Por Rosanne D’Agostino e Mariana Oliveira, Do G1 e da TV Globo — Brasília
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta quinta-feira (28) por 8 votos a 3 autorizar o compartilhamento pela Receita Federal – sem necessidade de autorização judicial – de informações bancárias e fiscais sigilosas com o Ministério Público e as polícias – essas informações incluem extratos bancários e declarações de Imposto de Renda de contribuintes investigados.
O julgamento, que se iniciou na semana passada, foi retomado na tarde desta quinta-feira. Foram cinco sessões de julgamento. Os ministros se reuniram para decidir quais seriam os limites a esse compartilhamento, ou seja, que tipo de documento poderá ser compartilhado e em quais situações o compartilhamento exigiria autorização judicial.
No dia anterior, havia se formado maioria (6 a 0) em relação ao compartilhamento de informações genéricas da Unidade de Inteligência Financeira (UIF, antigo Coaf), da Receita Federal e do Banco Central.
Nesta quinta-feira, o tribunal decidiu autorizar o compartilhamento de informações detalhadas (extratos bancários e declaração de Imposto de Renda, por exemplo), no caso específico da Receita.
Embora os ministros admitam o compartilhamento, houve divergência entre o relator Dias Toffoli e os demais em relação aos dados da Receita Federal e do antigo Coaf.
Desde que o julgamento se iniciou, na semana passada, votaram a favor do compartilhamento das informações sigilosas sem necessidade de autorização judicial oito ministros:
Alexandre de Moraes
Edson Fachin
Luís Roberto Barroso
Rosa Weber
Luiz Fux
Cármen Lúcia
Gilmar Mendes
Ricardo Lewandowski
O ministro Dias Toffoli impôs restrições ao compartilhamento em seu voto. Marco Aurélio Mello e Celso de Mello votaram contra o compartilhamento sem autorização judicial.
Ministros que votaram nesta quinta (28)
CELSO DE MELLO
O decano (mais antigo ministro) da Corte, Celso de Mello, foi o último a votar. Ele se pronunciou contra o compartilhamento de dados da Receita com investigadores sem autorização judicial.
Para Celso de Mello, o poder investigatório do Estado não o exime do dever de preservar o sigilo bancário, “sob pena de os órgãos governamentais incidirem em total desrespeito as garantias totalmente asseguradas aos contribuintes e às pessoas em geral submetidas ou sujeitas à persecução penal”.
O ministro afirmou que a UIF se limita a receber informações financeiras e a promover o intercâmbio desses dados sensíveis. Por isso, é possível o compartilhamento.
“Considero legítimo o compartilhamento do que se contiver em seus relatórios de inteligência financeira para fins de natureza penal, recaindo sobre o MP o dever de preservar o sigilo de tais dados.”
O ministro também criticou a inclusão do tema Coaf no julgamento. “A análise deve se restringir aos limites temáticos da repercussão geral”, afirmou.
MARCO AURÉLIO MELLO
Marco Aurélio Mello divergiu dos demais ministros entendendo que o compartilhamento de dados da Receita exige autorização judicial.
“Se diz que há de se combater a corrupção. Sim, há de se combater a corrupção. Em todas as modalidades existentes. Mas tendo presente que, em direito, o meio justifica o fim, e não o fim o meio, sob pena de se construir uma Praça dos Três Poderes e um paredão, e passarmos a fuzilar os que forem acusados de terem causado algum dano ao setor público”, afirmou o ministro.
O ministro afirmou ainda que o processo se tornou “momentoso” em razão de duas liminares, a concedida a pedido do senador Flávio Bolsonaro e a outra que estendeu a um “sem número de procedimentos criminais no país”, “prejudicando-se a jurisdição na área da persecução penal”.
GILMAR MENDES
Para o ministro Gilmar Mendes, não devem ser estabelecidas restrições a documentos como declaração de Imposto de Renda e extratos bancários pela Receita a investigadores.
“Só poderão ser para compor indícios de materialidade no estrito âmbito dos crimes contra a ordem tributária”, afirmou o ministro.
Segundo ele, “poderão ser acompanhados de dados detalhados ou quaisquer outros documentos desde que isso seja imprescindível para caso correlato”.
“Partindo do pressuposto de que a autoridade fiscal deve repassar ao Ministério Público todas as informações imprescindíveis para viabilizar a ação penal (…), considero temerário estabelecer de forma taxativa quais informações podem ou não constar da representação fiscal para fins penais”, disse.
Já sobre os dados do antigo Coaf (atual Unidade de Inteligência Fiscal, UIF), o ministro acompanhou o voto do ministro Dias Toffoli, afirmando que os dados podem ser compartilhados, mas o Ministério Público não pode encomendá-los.
“Não podem requisitar ao Coaf o detalhamento de contas bancárias e quaisquer outras informações que não tenham sido informadas”, disse.
RICARDO LEWANDOWSKI
O ministro Ricardo Lewandowski também acompanhou o ministro Alexandre de Moraes em relação aos dados da Receita Federal, favorável ao compartilhamento com o MP, incluindo extratos bancários.
Para Lewandowski, a Receita pode transferir informações sigilosas e isso, segundo ele, não representa quebra de sigilo.
“Não se está falando de prova obtida ilegalmente ou de quebra indevida por parte da Receita, eis que tudo se processou de acordo com a lei, em conformidade com as cautelas determinadas pelo Supremo Tribunal Federal”, afirmou o ministro.
Lewandowski, no entanto, não se manifestou sobre a legalidade do repasse de informações da Unidade de Inteligência Fiscal (UIF, antigo Coaf) para órgãos de investigação.
CÁRMEN LÚCIA
A ministra Cármen Lúcia votou a favor do compartilhamento de todos os dados pela Receita Federal com órgãos de investigação sem autorização judicial.
“Não cogito ilegalidade ou abuso, mas de mero dever todas as informações que te tenha tido acesso ao Ministério Público”, disse a ministra.
Cármen Lúcia afirmou que, sem o compartilhamento completo de informações, haverá a “fragilização” das investigações criminais. “Sem as fontes financeiras encaminhadas ao MP, sobre opinião da existência ou não do crime, o combate a todas as formas, das mais simples às mais sofisticadas, de práticas criminosas, envolvendo grandes organizações internacionais, seria ineficaz.”
Sobre o antigo Coaf, a ministra afirmou que o órgão (atual Unidade de Inteligência Fiscal, UIF) não é órgão investigativo. Por isso, segundo ela, não pode haver restrição no compartilhamento de dados.
“A base de dados da Unidade de Inteligência Financeira não é objeto de compartilhamento com outro órgão, não se podendo arguir quebra da privacidade”, afirmou Cármen Lúcia. “Assim, o envio de dados ao MP é função legalmente a ela conferida. Não pode ser considerado irregular nem restringida.”
A ministra disse ainda que, em nenhuma das instâncias, foi discutida a questão do Coaf, somente da Receita. “Não houve amadurecimento do que tem sido a razão de ser da repercussão geral”, afirmou. “Estaremos inaugurando matéria que não foi tratada nas instâncias próprias.”
Ministros que votaram na quarta (27)
LUIZ FUX
O ministro Luiz Fux votou pelo compartilhamento total de dados da Receita e do Coaf com o Ministério Público.
“Ainda que se possa extrair da Constituição direito ao sigilo, os direitos fundamentais não são absolutos a ponto de tutelar atos ilícitos. O direito não serve à proteção de iniquidades”, afirmou.
Para Fux, corrupção e lavagem de dinheiro “não combinam com qualquer tipo de sigilo”. “Os direitos à intimidade não são absolutos a ponto de tutelar atos ilícitos”, declarou ao votar.
Sobre a atual UIF (antigo Coaf), o ministro afirmou que o órgão trata “exclusivamente de comunicações de operações suspeitas”.
“Volto a afirmar, numa linguagem simples, para que a sociedade entenda: não são notas de supermercados que vão ser remetidas nem compra em lojas. São operações suspeitas de lavagem de dinheiro”, argumentou Fux.
ROSA WEBER
A ministra Rosa Weber votou a favor do uso de todos os dados da Receita pelos órgãos de investigação sem autorização judicial. A ministra afirmou que o ex-Coaf não é objeto do julgamento.
“Não engloba o Coaf, atual UIF, órgão público com competência distinta e voltada a finalidades que não se confundam com as da Receita”.
Rosa Weber disse que não vê inconstitucionalidade na previsão de envio pelas autoridades fazendárias “de notícias de eventual prática de crime na forma da representação fiscal para fins penais”
“É próprio do estado de direito que a descoberta de crimes reverbere nos órgãos de investigação para apuração de possíveis delitos. Trata-se de dever.”
A ministra também entendeu que os dados da UIF podem ser compartilhados porque as comunicações não veiculam extratos bancários de correntistas.
Rosa Weber afirmou que restringir o compartilhamento a dados globais “inviabilizaria por completo o mecanismo antilavagem”.
LUÍS ROBERTO BARROSO
O ministro Luís Roberto Barroso votou a favor do compartilhamento de dados da Receita com o Ministério Público.
“Não há quebra de sigilo aqui. Há uma transferência de sigilo. O MP tem o dever de preservar esse sigilo, e constitui crime vazar informação”, afirmou.
Com relação à UIF, o ministro disse que o compartilhamento das informações é uma realidade mundial. “Serve para identificar crimes de diferentes naturezas e muito graves”, disse.
Barroso afirmou que, depois de liminar concedida por Toffoli suspendeu processos que continham dados detalhados compartilhados entre o MP e órgãos de controle, a UIF (antigo Coaf) reduziu o número de relatórios produzidos. Para ele, não se deve aplicar nenhuma vedação ao compartilhamento desses dados.
O ministro também defendeu que o Supremo não deveria discutir os dados do ex-Coaf e classificou de “postulação engenhosa” o pedido da defesa do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) para que seu caso fosse suspenso.
“Não era possível a expansão do objeto”, afirmou o ministro, sobre a liminar concedida por Toffoli. “A própria lógica da atuação do Coaf é diferente da Receita e o regime jurídico é diferente”, argumentou.
EDSON FACHIN
Fachin acompanhou a divergência aberta pelo ministro Alexandre de Moraes no sentido de que todos os dados da Receita possam ser compartilhados com o MP sem autorização judicial. Segundo o ministro, o Supremo já entendeu que isso “não ofende o direito ao sigilo bancário”.
“Entendo viável a irrestrita remessa das informações coletadas pelo fisco, bem como a integralidade do procedimento, sendo desnecessária a prévia autorização judicial”, afirmou.
Sobre o ex-Coaf, o ministro afirmou que as informações podem ser compartilhadas, pois a UIF não tem acesso a dados protegidos por sigilo bancário e fiscal.
“Isso retira, a meu ver, a possibilidade que se verifica de alegadas devassas sob encomenda, na medida em que as comunicações devem ser implementadas independentemente de comunicação”, disse Fachin.
O ministro também defendeu que os relatórios podem funcionar como prova. “A análise empreendida pode se revelar apta em tese à reconstrução histórica de um determinado fato” , disse.
Em seu voto, o ministro Edson Fachin voltou a afirmar que o julgamento extrapolou o escopo inicial do recurso que chegou ao STF, que dizia respeito só à Receita, e não ao Coaf.
Ministros que votaram no último dia 21
Saiba quais são os argumentos utilizados pelos ministros que já votaram:
ALEXANDRE DE MORAES
O ministro Alexandre de Moraes divergiu do relator, argumentando que é possível o compartilhamento de todas as informações produzidas pela Receita Federal que ensejarem possibilidade de prática de ilícito tributário e que a Receita pode abrir um procedimento administrativo fiscal.
“Todas as provas produzidas a partir desse procedimento são lícitas”, afirmou Moraes.
Para Moraes, a Receita pode encaminhar documentos na íntegra, como extratos bancários e declarações de Imposto de Renda.
Segundo o ministro, “os direitos fundamentais não podem servir como verdadeiro escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas”.
“Não é essa a finalidade das garantias individuais, das liberdades públicas, possibilitar uma verdadeira redoma protetiva para que as organizações criminosas, os criminosos, possam atuar”, disse.
Moraes afirmou que se trata de prova “emprestada”, que foi “obtida mediante procedimento regular, garantido contraditório”.
“A Receita pode enviar tudo, todos os dados, todas as informações necessárias”, disse.
Com relação ao Coaf, o ministro defendeu que o compartilhamento de informações é constitucional.
“O mecanismo de compartilhamento, o destinatário para fins penais, a legislação aplicada, os compromissos internacionais são os mesmos [da Receita]”, afirmou.
“É constitucional o compartilhamento, tanto pela UIF, dos relatórios de inteligência financeira, quanto pela Receita Federal do Brasil, da íntegra do procedimento fiscalizatório que define o lançamento do tributo com órgãos de persecução penal para fins criminais, que deverão manter o sigilo das informações”, afirmou.
O ministro não se manifestou sobre se o MP pode encomendar relatórios de pessoas que não estejam sendo investigadas. Toffoli foi contra essa possibilidade.
Moraes divergiu do relator no ponto em que ele defende que os dados podem eventualmente servir como prova. Toffoli entende que não.
“Obviamente que a UIF produz informações, ela não tem por finalidade produzir provas. Mas, eventualmente, pode ser utilizada, dentro do contraditório”, defendeu. “Nas informações, pode ter uma prova, uma prova documental.”
DIAS TOFFOLI
Em seu voto, o relator do recurso, ministro Dias Toffoli, defendeu que o Ministério Público seja proibido de encomendar relatórios contendo dados sigilosos de pessoa que não esteja sendo investigada ou não tenha sido alvo de alerta emitido pelo antigo Coaf.
“Não é possível a geração de RIF [relatório de inteligência financeira] por encomenda (‘fishing expeditions’) contra cidadãos sem alerta já emitido de ofício pela unidade de inteligência ou sem qualquer procedimento investigativo formal estabelecido pelas autoridades competentes”, afirmou Toffoli sobre os dados da UIF.
“Fishing expeditions” é como são chamadas investigações baseadas numa “pesca” aleatória de provas, a partir de uma especulação de que há determinado fato criminoso, embora sem elementos que justifiquem uma apuração.
Na quarta, o ministro havia se manifestado pela restrição ao compartilhamento de dados da Receita Federal. De acordo com o voto do ministro, a Receita não pode encaminhar a esses órgãos documentos na íntegra, como extratos bancários e declarações de Imposto de Renda, porque, no entendimento dele, o compartilhamento desse tipo de informação exige autorização judicial.
O caso
Em julho deste ano, o presidente do STF, Dias Toffoli, concedeu liminar (decisão provisória) suspendeu em todo o território nacional processos que tiveram origem em dados fiscais e bancários sigilosos de contribuintes compartilhados sem autorização judicial.
O ministro Toffoli tomou a decisão ao analisar pedido do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), um dos cinco filhos do presidente Jair Bolsonaro. O senador argumentava que o Ministério Público do Rio de Janeiro teve acesso a informações fiscais dele sem autorização judicial.
A decisão de Toffoli foi tomada após esse pedido, mas não abarcou somente a investigação de Flávio Bolsonaro. A liminar suspendeu todos os processos e investigações no país.
Um levantamento do Ministério Público Federal (MPF) apontou que, após a decisão de Toffoli, 935 ações e investigações estão paralisadas na Justiça.
Sob a justificativa de subsidiar o julgamento, Toffoli ordenou que o Banco Central (BC) enviasse relatórios contendo dados sigilosos de 600 mil pessoas e empresas ao STF dos últimos três anos. O ministro afirmou que não acessou os dados.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) se manifestou contra a ordem, classificando a medida de “demasiadamente interventiva”. O ministro manteve a decisão, e só a revogou após receber novas informações da UIF e do Ministério Público, que considerou terem sido satisfatórias.
Dias Toffoli suspendeu o uso de dados detalhados de informações do Coaf até que o plenário da Corte julgue qual é extensão possível da troca de informações sem que um juiz autorize e sem que isso represente quebra de sigilo. Esse é o julgamento que começou nesta quarta-feira.