Por Pedro Alves e Tahiane Stochero, G1 DF e G1 SP
Sancionada no dia 5 de setembro, a lei de abuso de autoridade já tem efeito prático em tribunais pelo Brasil. Um levantamento feito pelo G1 mostra que, desde o início do mês, pelo menos 39 decisões judiciais já seguem as novas regras, ainda que elas só comecem a valer em janeiro de 2019.
Uma dessas decisões, tomada por uma juíza de Garanhuns, no interior de Pernambuco, revogou a prisão preventiva de 12 acusados de integrar uma organização criminosa. Na decisão, a juíza Pollyanna Maria Barbosa disse que se tornou crime manter alguém preso quando cabe soltura ou medida cautelar. A reanálise do caso foi feita antes mesmo de a lei de abuso de autoridade começar a valer.
Nos 39 casos levantados pelo G1, os juízes têm o objetivo de evitar acusações de excessos na condução dos processos. A nova lei prevê penas de até quatro anos de detenção a autoridades condenadas por abuso.
As decisões judiciais preocupadas com essa questão foram encontradas em tribunais de Pernambuco, do Distrito Federal, de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Tocantins.
Do total, 37 decisões dizem respeito a pedidos de penhora de bens de devedores, e uma determina o arquivamento de um inquérito policial. Todas citam artigos que constam da primeira versão da lei como ela foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro, publicada em 5 de setembro.
Outra parte, composta de vetos feitos por Bolsonaro que acabaram derrubados pelo Congresso, foi publicada na última sexta-feira (27).
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Penhora de bens
As 37 decisões que tratam de penhora de bens estão em processos de cobrança de dívidas. Nos pedidos feitos aos juízes, os autores solicitam a penhora de bens dos devedores para o pagamento do débito.
A maioria dos casos (25) foi encontrada no Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT). Todas as decisões foram tomadas pelos juízes Carlos Fernando Fecchio dos Santos e Luciana Correa Torres de Oliveira.
Usando o mesmo texto, os magistrados negaram a penhora dos bens em todos os casos. O motivo citado para a decisão foi o artigo 36 da lei de abuso de autoridade. O trecho afirma que é crime:
Decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la.
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
O texto que aparece nas decisões dos dois magistrados faz uma crítica à lei de abuso de autoridade e afirma que ela é “incompleta” e tem constitucionalidade “questionável”.
“O tipo penal acima transcrito é aberto quanto às expressões exacerbadamente e pela parte (não esclarece se autor ou réu), isto é, é espécie de lei penal incompleta, que depende de complemento valorativo, feito pelo intérprete da norma, em função de permissão legal.”
Os juízes afirmam ainda que não têm como garantir a correção rápida dos valores penhorados, para evitar excessos. Isso porque é o credor quem informa o valor da dívida e pode acabar passando um total maior que o devido.
“Na prática diária, onde o juiz é responsável pela condução de milhares de processos, nem sempre é rapidamente visualizado e corrigido o exagero desnecessário de tais gravames”, dizem as decisões.
Entendimento diverso
Já no Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF) – que compreende os estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo – o entendimento foi diferente. Em dez casos encontrados pelo G1, os juízes Marianna Carvalho Belotti e Eduardo Oliveira Horta Maciel também citaram a lei de abuso de autoridade. No entanto, ao invés de indeferir os pedidos de penhora de bens, os magistrados solicitaram informações sobre o valor atualizado do débito.
No Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), o juiz Evandro Carlos de Oliveira negou pedido em ação de improbidade administrativa, também citando o artigo que proíbe penhora de valores excessivos. O processo corre em segredo de Justiça.
O G1 tentou contato com os juízes por meio do TRF-2, do TJDFT e do TJSP. O primeiro não respondeu até sábado. Já o TJSP afirmou que “magistrados não se manifestam sobre processos, de acordo com o artigo 36 da Lei Orgânica da Magistratura”.
O TJDFT disse que os juízes foram consultados, mas não quiseram se posicionar.
Arquivamento de inquérito
O G1 também encontrou decisão de um juiz do Tribunal Regional Eleitoral de Tocantins (TRE-TO) que arquivou um inquérito aberto pelo Ministério Público contra a prefeita da cidade de Bernardo Sayão, Maria Benta Azevedo, com base na lei de abuso de autoridade.
A investigação foi aberta após o recebimento de denúncia anônima pelo MP. No entanto, o próprio órgão reconheceu que as acusações eram genéricas e que não foram encontradas provas contra a prefeita.
Na decisão, o juiz Jacobine Leonardo afirma que o arquivamento é “medida que se impõe, sob pena de configuração do art. 27 da lei 13.869, de 05 de setembro de 2019”. A norma diz que é crime:
Art. 27. Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
O que dizem especialistas
Para o professor do Centro Universitário de Brasília (Uniceub) Thiago Machado, há certo exagero na preocupação de alguns juízes, principalmente nos casos em que o pedido de penhora foi negado apenas com base na lei.
“Não é crível que um juiz da capital federal não consiga fazer uma interpretação da norma. A gente sabe que não existe crime se não existir intenção. Então se eles não pretendem causar danos à parte, não há crime.”
Segundo o especialista, a lei vai exigir maior cuidado dos magistrados em alguns momentos, mas não é rígida a ponto de justificar essas preocupações.
A opinião é a mesma do especialista em direito constitucional da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Thiago Bottino.
“O juiz não deveria se preocupar se der uma decisão clara e que defina o valor correto para penhora.”
O especialista, no entanto, tem uma crítica à norma. “A lei cria mais crimes, mais penas. Precisamos perder o fetiche por direito penal e utilizá-lo apenas nas situações mais graves”, afirma.