Letycia Bond – Repórter da Agência Brasil
O ano legislativo chega ao fim com um saldo relativamente positivo para a comunidade LGBTQIA+. Na Câmara dos Deputados, dos 41 projetos de lei (PLs) apresentados até outubro deste ano relativos a esta comunidade, 26 eram favoráveis ao grupo e 15 contra, o que representa 63% dos projetos favoráveis. No Senado Federal não houve registro de nenhum dos dois lados. .
De acordo com a Observatória, plataforma da Diadorim, agência de jornalismo independente que tem esse grupo como nicho, em 2023, a Câmara dos Deputados teve quase o dobro de PLs, 81, sendo 44 para promover retrocesso nos direitos das pessoas LGBTQIA+ e 37 para assegurá-los. Na outra Casa, o Senado Federal, a ordem foi inversa, com predominância de projetos a favor da comunidade. Foram sete pró-LGBTQIA+ ante dois contra.
No ano em que Luiz Inácio Lula da Silva reassumiu a presidência da República, em seu terceiro mandato, foi constatado o maior pico de propostas de deputados federais, dentro do intervalo de seis anos analisados (de 2019 a 2024). O ano de 2021 foi o que teve a segunda maior quantidade, 50, sendo 32 em prol do grupo que desafia a heteronormatividade e 18 contra.
Em 2019, primeiro ano de Jair Bolsonaro na presidência da República, também houve muitas iniciativa por parte dos deputados federais e certo equilíbrio quantitativo entre os que lutam ao lado dos LGBTQIA+ (26 propostas) e os que se opõem a eles (17). Naquele ano, as cinco propostas legislativas dos senadores foram pela defesa da comunidade, característica que permaneceu nos anos de 2020 (4) e 2022 (4). Nestes dois anos, a vontade dos deputados de fazer os direitos se ampliarem venceu, de certo modo, já que, respectivamente, assinaram 16 e 12 projetos.
A Observatória contabilizou 149 PLs que beneficiariam ou beneficiaram essa parcela da população na Câmara Federal, entre janeiro de 2019 e outubro de 2024. No Senado, foram 27.
Além de reconstituir o panorama em números, a plataforma compartilha detalhes sobre os temas mais recorrentes nos projetos pró-LGBTQIA+. De 2019 a 2024, 149 tramitaram na Câmara dos Deputados e, desse total, 62 (41,6%) buscavam estabelecer medidas e políticas públicas de combate ao preconceito e à violência. No Senado foram 27 e a mesma temática existiu em maior quantidade, sendo verificada em 11 deles (40,7%).
Propostas
Em relação aos objetos mais comuns nas propostas que tinham como finalidade cercear algum direito, o que se sobressaiu, ao longo dos últimos anos, na Câmara foram os que queriam proibir linguagem neutra em documentos públicos, escolas e outros ambientes. O mesmo se aplica aos senadores.
Outra contribuição da plataforma é a pormenorização quanto às siglas que apresentaram as propostas. O PSOL, o PSDB e o PT são os partidos que mais apoiam a causa na Câmara dos Deputados, enquanto PL, PSL, que foi rebatizado de União Brasil, e o Republicanos estão na outra ponta.
No Senado, PSOL, Rede, MDB e PSDB são aliados do movimento. O PL aparece novamente como o que mais se esforça para emplacar a PLs contra a comunidade.
Artimanhas
O advogado Paulo Malvezzi, cofundador da Diadorim e profissional responsável pela pesquisa da plataforma, diz que há, por vezes, impressão de que em todos os lugares é possível que os membros da comunidade sejam livres para expressar afeto publicamente, quando na verdade, esta é a realidade de poucos espaços. “Às vezes, a gente fica muito viciada, por conta de uma representação muito forte do movimento LGBTQIA+ nos grandes centros urbanos, de que a coisa está muito boa, de que você pode se mostrar da forma como quer na sociedade, mas isso ocorre só em lugares muito pequenos, em bairros muito bem demarcados dentro das grandes cidades. O resto do país é vedado às pessoas LGBTQIA+”, afirma ele.
“Ou, se você está nesses lugares e enfrenta a repressão, isso, muitas vezes, significa risco de vida ou colocar sua integridade física em perigo”, emenda.
Uma das táticas dos parlamentares conservadores, aponta Malvezzi, é instalar uma atmosfera de pânico moral, engendrada, com frequência, a partir de enganações, enquanto os que buscam igualdade os direitos dos LGBTQIA+ aos do resto da população se atêm à realidade. “São projetos com justificativas pífias, que usam o pânico moral, que trazem, às vezes, argumentos com base no que aconteceu no exterior, algo que dizem que aconteceu na Inglaterra sobre uma pessoa trans que atacou outra pessoa no banheiro e isso, de repente, vira uma avalanche de projetos sobre banheiros e que são replicados ipsis litteris [exatamente com os mesmos termos] em outros estados, no Congresso Nacional. Cria-se uma onda de projetos para atacar um problema que não existe na realidade. O que eles buscam é capitalizar politicamente em cima de pânico moral, isso é evidente”, defende.
Malvezzi também recomenda que se repare em outra manobra feita com engenhosidade pela bancada conservadora. “Há também uma estratégia muito clara de opor direitos de crianças e adolescentes ao direito de pessoas LGBTQIA+. Isso é um completo absurdo, porque não há contradição aí. Você vê, por exemplo, muitos projetos de cirurgias [de redesignação sexual] e outros processos [afins], quando eles [os voltados a menores de idade] não são permitidos no Brasil, somente em caráter experimental, em condições muito específicas e com o acompanhamento e a autorização dos pais. Eles proíbem coisas que já não são permitidas aqui, tentam vedar coisas e políticas que não são políticas públicas no país. É muito preocupante que se tenha tantos parlamentares engajados nesse tipo de construção de fantasia e mobilização de afetos, ódio e preconceitos para conseguir ganhos políticos”, explica.
Para o cofundador da Diadorim, a tentativa dos políticos conservadores que atuam no Legislativo é cimentar uma agenda anti-LGBTQIA+ como degrau de um trampolim para angariar votos e aproveitar prerrogativas dos cargos. “Não acho, inclusive, que eles tenham qualquer interesse na aprovação desses projetos anti-LGBTQIA+. A aprovação é completamente incidental, é conjuntural. O que eles querem é apresentar, e, depois de apresentados, eles pouco se mobilizam para aprovar, é surfar em cima do pânico que se cria, da exposição midiática que conseguem e depois passam para o próximo tema”, avalia Malvezzi, ponderando que a proporção maior de PLs favoráveis no Congresso Nacional, atingida graças à ala progressista, prova que o país não é tão retrógado, se se examinar objetivamente.
Perfil nos estados
De acordo com o levantamento, as Assembleias Legislativas mais LGBTQIA+fóbicas são a do Rio de Janeiro, a de São Paulo e a de Mato Grosso. Nesse nível do Poder Legislativo, as maiores preocupações são quanto à linguagem neutra, ao controle do que se difunde em materiais escolares e ao compartilhamento de banheiros públicos que adotem como regra o respeito à identidade de gênero das pessoas.
As casas legislativas que mais saem em defesa dos LGBTQIA+ são São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco. As pautas tidas como mais relevantes são as de combate à discriminação, medidas simbólicas, como a instituição de datas especiais no calendário, e a elaboração de censos, pesquisas e dossiês temáticos, fundamentais para municiar as autoridades governamentais e especialistas e entidades com essa bandeira.